Voz e Texto
A voz da criança
O grito lançado no pátio de recreio e a pequena voz cantada infinitamente delgada de uma criança são o resultado do mesmo ser.No entanto, a energia que representa o gesto vocal é tão intensa como a da atividade espontânea do grito; depende exclusivamente de uma aprendizagem. Esta é uma tarefa difícil e que dura bastante tempo. "A energia adquirida durante a inspiração é transformada em energia sonora ao nível da laringe, e posteriormente carregada de uma mensagem, afetiva articulada e desenvolvida ao nível dos ressoadores e dos órgãos de articulação fonética e veiculada até à orelha do ouvinte. É a sua dinâmica" explica François Combeau.Mesmo para o adulto, a tomada de consciência de todo este trabalho no seu corpo, a aquisição de energia, a sua transformação, a sensorialidade do gesto vocal é difícil: são 120 os músculos solicitados.
Para a criança, esta sensorialidade é um trabalho lento.A criança progride na qualidade do seu gesto vocal, à medida que aprende a "Viver no seu corpo", a viver com as sensações, a isolar e posteriormente a coordenar os seus gestos, como faz um instrumentista com o seu instrumento. Utilizar o seu corpo, da mesma maneira como utiliza o seu instrumento musical.
- o cantor tem a sua força na terra. Uma boa estabilidade, um sólido enraizamento permite-lhe encontrar o seu equilíbrio que é já uma força e que o coloca num contacto de força com a terra.
- a inspiração plena contempla o movimento livre do diafragma, a abertura torácica e a libertação das costelas flutuantes que as torna móveis. A inspiração, gesto natural, que não se comanda, obtém-se pela maior abertura costal, abaixamento do diafragma, e por conseguinte, um ligeiro dilatar do abdómen.
As crianças interessam-se vivamente pelo mecanismo dos seus corpos. Por isso, parece-me, não ser necessário inventar muitos jogos, mas apenas encontrar imagens que estimulem a sua imaginação: «tornar-se um gordo balão»... e sobretudo ajudar a criança a concentrar-se no seu próprio corpo e nas suas sensações.
- a expiração deve efetuar-se de uma forma controlada e
tonificada pela utilização dos músculos abdominais. O pequeno fio de ar fresco
que dos lábios, simplesmente entreabertos, lenta e subtilmente vai fluindo sem contrações
das espáduas, obriga ao trabalho dos músculos do baixo ventre, o que os vai
fortalecer.
O exercício que consiste em soprar para a chama de uma vela imaginária, colocada à nossa frente e que não devemos apagar é significativo. O que igualmente acontece quando se expele o ar violentamente entre os lábios, o que provoca a sua vibração, porque a energia apenas se vai alicerçar no trabalho dos músculos abdominais.
- a descontração dos músculos do pescoço, da cara e das espáduas é fundamental. Todos os jogos acerca da marionete de pau (contração) ou de lã (descontração- moleza) ajudam a atingir a atitude certa, o que quer dizer a descontração sobre a qual se vai alicerçar a correta tonicidade ( e não a crispação).
- a fonação pode funcionar de uma forma natural num corpo livre e tonificado. A cabeça «pousada» confortavelmente em cima do pescoço e da coluna vertebral, os olhos claros e risonhos, o nariz bem aberto (brincar aos coelhos permite adquirir esta sensação) se a abertura máxima é conseguida, a fonação resultará com os melhores resultados. A imagem do pequeno fio que um marionetista imaginário teria fixado na cabeça do pequeno cantor, numa posição média entre o pescoço e o alto da cabeça e que penduraria posteriormente do teto, ajuda a criança a encontrar a atitude correta.
- encontrar a nasalidade do som é o primeiro exercício: brincar a mascar um "chwing-gum" imaginário, manifestando por um som vago o seu contentamento, imitar o mugido da vaca, ou o grunhido de um porco poderão permitir a sensação da colocação do som à altura do nariz, por detrás dos dentes.
Exercícios com a utilização de consoantes nasais: "n", "m", "gn" lentamente emitidas e seguidas de diversas vogais, são um bom método. Toda esta procura pode ser feita essencialmente com a utilização da voz falada. A projeção destas consoantes nasais, coloca o som no seu lugar exato, o que vai beneficiar a voz cantada.
- Trabalhar a cor parece-me o caminho mais acertado e seguro para ajudar a criança a "colocar o som". Como ele tem a sua força na terra mediante um bom enraizamento, o cantor procura colocar o som agudo no alto da cabeça. É este som que é amplificado pelos ressoadores: os ossos do crânio e cavidade bucal
Preparar a cara e os lábios na forma exata da vogal trabalhada, e depois cantar de acordo com o "molde". «u, ou, o» são as vogais mais apropriadas. Vocalizar sobre curtos motivos, de forma "ligada" ou em "staccato" em movimentos contínuos ou em terceiras, ou ainda melhor, isolar um fragmento significativo da peça a aprender e vocalizá-lo com as vogais acima propostas, em diferentes alturas.
A tessitura da voz ir-se-á estendendo facilmente de uma forma harmoniosa, através de uma emissão "distendida", bem timbrada e alimentada por uma boa respiração.
As vogais «i e é»mais difíceis de trabalhar exigem o repouso do maxilar e o abaixamento do queixo.
Tomar consciência da abertura da boca em altura pelo repouso do maxilar inferior é uma primeira necessidade. A mobilidade da língua, a colocação da sua ponta extrema logo atrás dos dentes e o seu movimento no fundo da boca, da mesma forma que a sensação da sua espessura exigem um controlo apertado de cada criança e dos diferentes jogos utilizados para o efeito
O trabalho sobre o «a» pode ser muito vivo se passar pela abordagem das diferentes formas de pronunciar o «a», desde o riso à agonia, passando pela surpresa e pela alegria.
A colocação exata da língua e do bocejo determinam a cor de uma vogal.
- A projeção do som consegue-se pelo vigor da articulação das consoantes: elas são os "músculos" essenciais na frase cantada.
O lugar de cada consoante: sobre os lábios, ao nível dos dentes ou da laringe... descobre-se e estuda-se com as crianças através de jogos de perceção e de escuta.
O trabalho dos lábios (b. p. m. f...), da língua (l. n...) dos dentes (d. t...), da laringe (k...) é uma sensorialidade que interessa muito às crianças. A consoante não deve endurecer a linha vocal, nem a interromper, mas apenas a balizar com apoios.
Qual é o maestro que não repete «articulem melhor...» «Onde está o texto?»...
O trabalho da articulação é a implementação do jogo das vogais e das consoantes que constituem a língua, mas o mais importante é aliá-lo à "leitura" que se pretende fazer do texto: - quais são as palavras que transportam os elementos essenciais de uma frase, de forma a que se compreenda a mensagem que se pretende transmitir?
A escolha das palavras será que se pode fazer com a ajuda das crianças? Quais os critérios de escolha? Qual é o elemento importante a transmitir no texto em causa?. Qual será a imagem ou a palavra que a vai exprimir? Como é que se vai transmitir?
Este trabalho coloca em funcionamento a mente, a imaginação e a reflexão não apenas do maestro mas igualmente de cada um dos cantores.
«Quando se fraseia bem um texto, canta-se melhor a música que está com ele. Quando se pretende transmitir uma mensagem, articula-se melhor e, quando se articula bem, a voz torna-se mais bela, mais colorida, mais expressiva, mais natural.» ensina ERIC TAPPY;
A articulação é igualmente interpretação musical: lutar contra a chateza de uma interpretação é primordial; hierarquizar as palavras, os tempos, as durações, as alturas é um trabalho a ser igualmente feito, mercê de uma boa reflexão, de forma a enriquecer a forma de cantar qualquer canção, por mais modesta que ela seja.
- O fraseado, tão difícil de conseguir, não é ele em si mesmo esta hierarquia entre os sons de um mesmo elemento-frase?
A amplitude de um som bem emitido tendo a cor exata, apoiado sobre uma respiração suficiente, sendo emitido por um corpo colocado na posição correta, terá generosamente um valor longo. Se se considera normalmente que um som curto não está apoiado numa boa respiração e um longo numa boa respiração, a medição da duração dos sons terá um significado mais profundo, ela constatar-se-á na continuidade e descontinuidade do canto. Assim, a beleza de um som pode ser apreciada pela sua elasticidade: o seu poder de amplitude e ao mesmo tempo de arredondamento que o torna apto como que a solicitar o som seguinte. Isto nada mais é do que o princípio da tensão e distensão que rege a música, assim como todos os outros fenómenos da vida. Assim, o canto torna-se Vivo mercê daquele movimento verdadeiramente corporal da tensão-distensão. Torna-se desta forma possível a INTERPRETAÇÃO, não circunscrita a uma simples panóplia de "nuances", com uma profundidade muito mais real.
Permitir às crianças a sensação de estarem a interpretar as peças do seu repertório, por mais modestas e simples que sejam, é uma aproximação verdadeira à música, uma vivência sensorial profunda, um meio de expressão autêntico
N. Harnoncourt, no seu magnífico capítulo «articulação», que faz parte do «Discours musical», exprime-se desta maneira, ao referir-se ao ouvinte de uma música bem articulada: «Elas dirigem-se à nossa sensibilidade corporal, ao nosso sentido do movimento, e prepara o espírito para uma audição ativa, em diálogo». Entendo que estas apreciações efetuadas acerca da música barroca são muito pertinentes para todas as outras músicas.
O modelo vocal do maestro,
-na verbalização que utiliza para explicar as suas imagens e esta sensorialidade do som,
-a sua géstica naturalmente um pouco diferente, aquando da execução dos diversos exercícios,
- o controlo visual do trabalho de cada uma das crianças.
- a postura geral da criança,
- o seu empenhamento físico,
- a sua tonicidade e concentração
- a postura da sua cara e dos lábios....
- o controlo auditivo e individual de cada criança num clima de abertura e jamais com um espírito de julgamento
- a criança cantando sozinha, se está rodeada de confiança ouve a sua própria voz,
-enquadra-se, descobre-se e compreende como pode progredir comparando a sua com a voz dos outros companheiros,
- estas tarefas de observação são muito exigentes para o maestro
Detetar os defeitos da voz e conseguir corrigi-los é ainda mais difícil..
Trata-se de um dinâmica, um pensamento pedagógico que extravasa e subverte o pensamento generalizado do trabalho de grupo.
O Fraseado, a cor das vozes, por conseguinte, a expressão, ganham vida graças à energia sonora que existe numa voz bem colocada.
O CANTO, é pois, energia...
O CANTO, é atividade total...
O corpo, o espírito, o coração, todo o ser é solicitado, todo o ser é ativo.
Como não será o canto um renovador da vida interior de um ser, de cada ser que constitui um grupo, do grupo ele mesmo?
Hélène Guy
